Como um Lago de Verão - Parte II
Num dia de primavera, particularmente bonito, Nick e a sua mãe passeavam juntos pelo reino, como lhes era habitual, comprando bugigangas aqui e ali, quando viram algo que lhes chamou a atenção.
Sentada em frente a uma pequena barraquinha de rua, que se encontrava totalmente vazia, estava uma menina, com não mais do que seis anos, que – e isto sim chamaria a atenção de qualquer pessoa daquele reino – parecia estar irreversivelmente desolada.
E, como se isto já não fosse surpreendente o suficiente, a criança segurava nos seus braços um pequeno vaso de barro, com uma planta de ar adoentado no seu interior.
A rainha, imediatamente preocupada, acercou-se da menina, perguntando-lhe apenas alto o suficiente para que esta a ouvisse por cima do seus soluçar, “O que é que se passa, minha querida?”.
A menina olhou para a rainha, revelando grandes e expressivos olhos castanhos, e disse por entre soluços “A minha mamã é florista, e ela hoje conseguiu vender as nossas flores todas, menos esta. Só sobrou esta, e ela está doente, e vai ficar tão sozinha, coitadinha, sem companhia e doente.”
Dorothea sorriu carinhosamente, tocada pela profundidade da dor que esta menina sentia por algo tão insignificante como uma planta sozinha, o tipo de dor que só uma criança consegue sentir.
Sem hesitar, Dorothea encontrou a sua sacola de moedas e comprou a planta à menina, que desapareceu em busca da sua mãe, já com o sorriso típico de um habitante de Helianthus no seu rosto.
Ao virar-se para trás com o intuito de chamar Nick para prosseguirem o passeio, a rainha vê o seu filho absolutamente concentrado no vaso que esta segurava, e, antes de conseguir dizer Vamos, meu pequeno, já o príncipe Nick dera duas firmes passadas na sua direção, pondo-se à sua frente e perguntando “Achas que posso ficar com essa planta, mãe?”.
Surpreendida pela intensidade nos olhos e postura do seu filho, Dorothea anuiu e passou o vaso para as mãos de Nick, dando-lhe de seguida a mão e sorrindo, antes de continuarem o seu caminho.
*****
Nessa mesma noite, Nick estava deitado na sua enorme cama, depois da sua precetora ter fechado a porta do quarto e sussurrado “Agora durma, alteza, tenha bons sonhos”. Um vaso – novo, maior, simples e azul – encontrava-se na sua mesa-de-cabeceira. No seu interior, estava a planta da menina – “É uma artemísia, menino. É uma planta muito bonita, está com este aspeto porque apenas floresce no outono, e nesse vaso não tem espaço nenhum para crescer.” -, agora regada e bem cuidada.
Virando-se para o outro lado, Nick aconchegou-se nos seus muitos cobertores e completou a sua única rotina noturna que não era supervisionada pelo mordomo (ou pela aia, ou pela precetora): inspirou fundo, fechou os olhos com força e concentrou todas as suas energias num só pensamento:
Eu quero que alguém compreenda.
*****
Se estes acontecimentos tivessem tido lugar nos dias que correm, com certeza que o Nick saberia que nessa noite, por volta da hora de deitar da maioria das crianças, uma chuva de estrelas tinha sido visível da janela do seu quarto. Nick saberia, certamente, que aquilo a que nós corriqueiramente chamamos estrelas cadentes, não passam de meteoritos ardendo na atmosfera.
Hoje em dia, Nick saberia tudo isto.
Mas mesmo nessa altura, toda a gente sabia que um desejo pedido a uma estrela cadente se torna sempre realidade.
E assim foi.
*****
Nick acordou com o som de um estrondo e um Au! Baixinho.
Sentando-se, ele esfregou os olhos e abriu-os lentamente, sendo que a primeira coisa que viu foi o seu novo vaso. O que o fez acordar realmente, impedindo-o de voltar a adormecer, foi o facto da sua planta, a sua artemísia, ter desaparecido.
Só então, com o choque do que vira (ou do que não vira), Nick percorreu o quarto com os olhos, à procura do que provocara o som que o despertara tão bruscamente.
Se Nick já estava surpreendido, nada se compara a como ficou com o que viu.
Ao fundo do seu quarto, ao lado da sua cómoda, e com uma caneca partida a seus pés, estava uma menina. A menina, ao sentir-se observada, olhou para ele e começou a tagarelar, “Desculpa desculpa desculpa, eu não te queria a’ordar, mas estava com f’io, vim à procura duma c’misola, não sabia-“
Na verdade, Nick não ouviu uma palavra do que a menina disse, quer dizer, o pobre rapaz tinha sido rudemente acordado a meio da noite para encontrar uma menina, provavelmente da sua idade, com cabelo branco e liso até aos ombros, e uma franja que quase escondia os seus olhos cor de mel, despida, e a mexer na sua cómoda. O cérebro do Nick demorou, compreensivelmente, algum tempo a organizar-se.
Quando Nick finalmente se levantou para fazer alguma coisa, qualquer coisa, a menina ainda estava a falar “-eu aco’dei de repente no chão e-“ e ele decidiu que a primeira coisa a fazer era acalmá-la. E arranjar-lhe roupa, talvez, porque apesar do dia ter sido quente, a noite apresentava-se fria.
“Hei, hei, está tudo bem, não há problema”, disse-lhe Nick baixinho – se alguém acordasse agora iam haver problemas – enquanto remexia na sua cómoda em busca de uma camisola (onde é que estava aquela cor-de-rosa?) e calças para a menina, que agora o olhava com um ar atordoado. “Toma, podes usar isto”, Nick deu-lhe a roupa por que ela estava à procura, e que tinha desencadeado tudo isto.
Aliás, o seu súbito aparecimento é que tinha desencadeado isto, mas depois tratamos disso.
“Ob’igada”, respondeu ela, sorrindo, depois de acabar de vestir o seu novo vestido.
“De nada”.
Durante algum tempo – segundos? Minutos? Horas? – os dois ficaram ali a olhar-se, sem saberem bem o que dizer. Até que Nick, decidindo que não tinha acordado por nada, e porque o seu pai sempre lhe dissera para tratar bem os convidados – ela contava como convidada, certo? -, tentou conversar com ela.
“Como te chamas?”
“Não sei.”
Oh. O quê?
“Não sabes o teu nome?”
“Não, nunca me deram um.”
“Os teus pais não te deram um nome?”, Nick insistiu, não compreendendo como isso teria sido
possível.
“Pais? Eu não tenho pais.”
“Toda a gente tem pais.”
“Eu não.”
Detetando a confusão do seu novo amigo – porque, para ela, ele já o era – a menina tentou melhorar a situação:
“Queres tu dar-me um nome?”
“Eu?”
“Sim, tu. Não conheço mais ninguém, e não me parece bem ser eu mesma a escolher o meu nome. Ninguém escolhe o seu próprio nome.”
“Pois, acho que tens razão.”, depois de pensar alguns segundos, Nick disse “Que tal Artemísia?”
“Oh, isso não me parece bem. Tu és humano, mas não te chamas Humano pois não?”
Olhando de volta para o seu vaso inexplicavelmente vazio, Nick entende o que a menina queria dizer. Entendeu o que ela estava a implicar.
E ficou tão surpreendido como as crianças costumam ficar com coisas inexplicáveis.
Muito pouco.
“Tu és a minha planta.”
“Sim, sou. E, agora, durante a noite, sou tua amiga.”
Entusiasmado com a ideia de ter uma amiga, Nick sorriu e lembrou-se de ouvir a florista chamar pela filha, essa tarde na praça.
“Que tal Cora?”
“Se tu gostas. Eu sou tua, o meu nome é p’ra tu escolheres.”
Cora assim ficou.
Nick mal se apercebeu quando, depois de muitas horas a falar e a brincar com a sua nova amiga, a sua Cora, fechou os olhos e adormeceu com a cabeça na almofada.
Durante essas horas, Nick tinha contado a Cora como é ser filho único, herdeiro da coroa de um reino como Helianthus, a única criança com estatuto de príncipe num raio de quilómetros, e ela tinha ouvido com interesse. Nick tinha-lhe falado de como era divertido ver o Sr.
William correr atrás da sua própria cauda e como era bom estar deitado com ele ao sol, e Cora concordara. Nick tinha-lhe explicado as regras do seu jogo favorito, e ela tinha jogado entusiasticamente.
Enquanto a sua mente mergulhava na paz da inconsciência, o seu último pensamento foi,
O meu desejo realizou-se.
E adormeceu.
De manhã, quando a aia o veio acordar, a sua artemísia estava de volta no seu vaso. Nick sorriu, porque sabia que, quando a lua estivesse alto no céu, teria Cora a seu lado.
*****
Joana Coelho, 12.ºD
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