Manual de Pintura e Caligrafia de José Saramago



É tempo de colocar numa tela este rosto inteiro, de olhos e do que vêem ao seu redor os olhos no espelho, todas estas linhas e planos que de uma maneira ou de outra sempre convergem para os pontos de fuga que são as pupilas. Tanto mais que há outra razão. Esta escrita vai terminar. Durou o tempo que era necessário para se acabar um homem e começar outro. Importava que ficasse registado o rosto que ainda é, e se apontassem as primeiras feições do que nasce. Foi um desafio a escrita. Outro desafio faço ainda, mas no meu terreno verdadeiro: que eu seja capaz de pôr nesta tela o mesmo que ficou nestas páginas. Deve a pintura servir ao menos para isso. Não peço mais: peço muito. Outros (Piero della Francesca, Mantegna, Luca Signorelli, Paolo Uccelo, Bosch, Pieter Bruegel, Miguel Ângelo, Leonardo, Mathis Grunewald, Van Eyck, Goya, Velásquez, Rembrandt, Giotto, Picasso, Van Gogh, e tantos) puseram na pintura tudo. Que eu (H.) ponha este pouco. Não sei quanto tempo vou levar a pintar este auto-retrato. Aprendi, de uma vez para sempre, a não ter pressa. A primeira lição deu-ma a escrita. Depois, M. veio confirmar tudo e ensinar de novo. Haverá também o retrato de mostrar esse rosto de homem aprendiz? Não antecipemos. É da terra de hoje que se trata, não é do trigo de amanhã. Amanhã este espelho estará partido, hoje é o tempo dele e o meu.

Nota: José Saramago morreu hoje, dia 18 de Junho, em Lanzarote, aos 87 anos.

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