Desencanta




Ela canta e pergunta-se. Observa ou observa-se. Terá alguém olhado lá para fora? Dentro e fora? Debaixo do lençol? Por detrás do cabelo? Olhem só para a pequena porta na parte detrás da cabeça dele. Como ela a abriu. Como ele permaneceu estático. Como ela simplesmente desarrumou o quarto, tirou o que queria, partiu o que nunca poderia ter e chorou pelo que não estava lá.
A vista não é a melhor, o denso cabelo pouco ajuda, mas ela já se observou a fazê-lo. As suas pequenas mãos já afastaram aqueles cabelos, já vaguearam no denso bosque, no mesmo cheiro constante. Daqueles que não se sabe se gostamos por realmente merecerem toda a nossa apreciação ou simplesmente pelo sentimento que ligamos a ele e ao seu dono. É vaga a imagem. Vaga porque realmente não sabe se aconteceu ou não. Como o roupeiro está para Narnia, um bosque para o desconhecido. O pequeno quarto permanece o mesmo, o bosque vai sendo alterado. E se realmente já tem a imagem na cabeça do que vai encontrar, importará realmente de quem é o bosque? É pura sabotagem desde o primeiro instante.
Caminha e imagina-se como jornalista. Opinada é com certeza, ideias não lhe faltam. Falaria do que gostava, das artes e da moral de outrem. Não da dela. Vê-se mesmo de caneta na mão, com o bloquinho carregado de frases e perguntas, pontos finais e vírgulas, de alguém impregnado de talento. Tanto, tanto que quando chega ao extremo, lá mesmo ao topo, tudo desaba. Não, não é para ela afinal. Outros saberão mais de História e da agilidade das palavras. Rápidas gazelas saltar-lhes-ão pela boca, sempre precisas e mais que adequadas. Sempre pontuais e de energias reforçadas, de efémero nada há aqui. Sabem bem o que fazem, têm pele dura e aparência frágil. Serão camaleões se necessário. Saltarão também com a mesma agilidade para o ouvido daquele acolá e do outro mais adiante. Mas isto? Não é para ela não.
Passa os corredores, caminha animada. Desce e sobe escadas. Escuta todos os sons, e julga que ouve mais que os outros. Poderia jurar que eles não haviam notado no mesmo que ela, nas diferenças de tom de voz, na música de fundo, o som do vibrar do chão com o peso do entusiasmo, o zumbir deste e daquele insecto. O escarafunchar do bicho na terra, o bater de asas do bicho no ar. Era uma lima, uma pegada, uma palma de mão. Agora tudo secou.
Ela faz e desfaz, porque o mais difícil é manter. Anda e tropeça nos próprios atacadores que não quis apertar. Apertá-los-á e não mais conseguirá desfazer o nó. Fechada, reduzida e claustrofóbica. Arruma e desarruma a pequena sala secreta no fundo da nuca dele, no meio do bosque, perde-se em odores e pequenas salas que não a sua. Passa os dedos no pó, pergunta-se se ele alguma vez viu a sala, se ele se importaria que ela o fizesse. Passeia-se, vagueia e recusa-se a olhar por debaixo do seu lençol, a procurar a portinha na parte detrás da sua cabeça, a apalpar cegamente por entre o seu bosque. É tão mais fácil analisar os outros.

Isa Marques, Escola Secundária de Camões, 12ºC

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