Mais um romance de um sonhador





Ela queria ultrapassar a barreira do tangível. A ideia desta barreira alimentava-a, cabia-lhe a ela passá-la. Passá-la e dar-lhe outro nome. Passá-la para encontrar o que sonhava. Tudo isto na expectativa que o que encontrasse fosse superior e mais magistral do que como ela o tinha imaginado. E por fim, passá-la na ilusão do típico romântico. De satisfações momentâneas e fomes insaciáveis. De desejos intensos, mas ainda assim nela adormecidos, sedados, numa constante insatisfação. Mergulhada no mesmo sonho há meses, de segundos de êxtase, minutos de expectativa e horas de desilusão. Contudo esta dizia e voltava a dizê-lo, como quem se tenta convencer a si próprio, que a busca era o verdadeiro clímax. O instante do sonho alcançado, esse quase desconhecido, também ele se varria com o vento. E tão depressa aparece, como é substituído por um novo. Estranho ideal de vida este. É por isso que ainda não estava perfeitamente convencida…

Ele? Dele pouco sei. Dele pouco sabe ela. Apenas que é alto. Mais do que ela pelo menos. Nele vê o andar que lhe lembra o de uma qualquer personagem dum desses filmes a preto e branco. A analogia está feita, ele teria o nome da personagem. Faltava agora recordá-lo.

Usava constantemente palavras de músicos como suas. Fazia-as soar como novas. Raramente lhes identificava a origem. E que se engane quem pensa que esta desejava encontrar alguém que partilhasse o mesmo interesse pelos seus autores. Mentira. Nada disso! Repetia-as tantas vezes que já as achava suas. Tomava-as como originais, mais uma das suas marcas. Tudo o que dizia podia ser assim indiscretamente juntado, analisado, e tomado como banda sonora duma vida. De grandes encantos, porque se sentia observada, porque era sempre seguida com o olhar. Porque era sempre ouvida. Os singelos encantos desapercebidos para os outros. A linha guiadora para ela. Oh e como aqueles encantos de segundos por vezes recompensavam todas as horas de desilusão! Os diálogos mais fascinantes eram aqueles que se faziam em silêncio, os que ela tomava por pequenas ousadias, disfarçadas rebelias, a quase eterna satisfação. As “Recordações de um sonhador” estão mais que vivas! As “Noites Brancas” mais que actualizadas! E o prazer que lhe dava ver um jovem que seguia com ela no autocarro, mais um típico autocarro, a contemplar “O velho que lia romances de amor” talvez e, no dia seguinte, trazer o mesmo livro consigo como provocação! Julgará o leitor inexperiente nesta área de conversas silenciosas, que o interesse para ela era despoletar, no seu parceiro de autocarro, aquela a que chamaria a conversa de senso-comum, em que lhe perguntaria o nome e mais outras tipicidades. Conversas recheadas de interesses secundários, mas esses é possível que sejam sempre necessários. Para o bem ou para o mal. Clichés e mais clichés…Mais uma finita conversa? Nem de longe! A esta podia ela dar seguimento por horas. A expressão lia-lhe ela toda na cara. A conversa era feita na integridade pelo livro em comum, em cada um dos pares de mãos. As pessoas à volta? Essas nem notavam. E o belo que isto lhe parecia! Às vezes perguntava-se se seria a única a fazê-lo, mas nada de quebrar os encantos deste acto. Era apenas mais matéria para divagar, fantasiar ainda. Nada seria revelado, excepto aos seus participantes. No dia seguinte viria a senhora que parecia fugida dos anos 20, com o Dickens na mão. E ela traria também no dia que se seguisse, ou em qualquer outro em que soubesse que a voltaria a encontrar, um livro deste. Porque se queria sentir acompanhada na viagem afinal.

Como a irritavam as pessoas sem hábitos e rotinas! Como se tornava difícil dar continuidade aos seus diálogos se não se dignavam a aparecer a horas, nem tão pouco a trazer mais adereços em comum. Indignava-se até! Pareciam ignorá-la. E aí sentia-se sozinha, esquecida. Mas voltava às bases. Ao mais estranho dos diálogos, com aquele que nem olhares directos conseguia manter. Ou se se desse ao luxo de o fazer era assim de esguelha, como quem não quer a coisa, por detrás dos seus velhos óculos escuros, daqueles arredondados, ao estilo do Lennon. Mas pouco escondiam eles, pensará qualquer pessoa que saiba do que estou a falar. Pois era isto precisamente que a fascinava, a ideia de não saber se ele realmente os havia notado ou não. A quem se pergunta mais uma vez que ideal de vida é este…Para esses não tenho respostas! Ela tão pouco mo dizia. Eu tão pouco tenho essa capacidade de lho ler na cara. Esta parece efectivamente uma característica só sua, e não de um desses músicos de quem tão frequentemente rouba palavras. Talvez se deva a demasiados julgamentos externos esta vivência, onde se trabalha artificiosamente o que diz e o que se lhe é dito. Onde ninguém espera dela respostas imediatas. Pode analisá-las, estruturá-las como quer, quando quer. Cor, forma e, como é claro, tacto. Aquele que lhe dá arrepios e o que, estranhamente, neste caso, atravessa o limite do tangível. E se para alguns é esta a beleza das palavras, do diálogo, toda esta falta de preparação prévia, a ela pouco interessava. De espontaneidade pouco sabia.

Ele passa em seu redor. Ela vê-se no tal filme. E veste-se de preto e branco porque se sente mais perto do ideal. E anda nas ruas tal como se caminhasse como ele. Seria este, ou estaria com este. E a sintonia? E a mutualidade? Essas nem as palavras as descrevem. Mas ali? Quem é ela e no que se perde? Oh ali está confusa! Ali há espaço para o desejo que não corra como nos seus sonhos. Porque tem vergonha, e porque não teria tempo para o trabalho das palavras. Provavelmente o que dissesse seria eternamente analisado, eternamente por ela julgado. De tudo se teria arrependido. Por um instante pensa na sua imagem, no livro que lê e em tudo aquilo que faz dela o que é. Por um único e raro instante, sente-se envergonhada. Caminha nos sapatos de uma dessas pessoas possivelmente também manipulada em sonhos fantasiosos. É também uma pessoa, e não só o seguimento de outras. Todos à sua volta parecem possíveis seguidores desta arte, que ela tão bem conhece e domina. E assim não mais se identifica com a personagem do romance sonhador que descrevo. Sente-se, e esta é mesmo a palavra mais correcta, como uma idiota e fantasiosa sonhadora. Alucinada até! Quem é aquela que julga falar com estranhos na cidade, no autocarro, no beco de qualquer rua? E luta desesperadamente com o desejo que nunca o tenham notado. Como uma mente desocupada, com demasiado tempo em mãos, se leva por estranhos caminhos… Resta-lhe dialogar como qualquer pessoa normal. Deixar-se de rodeios e ver se afinal ainda domina esta arte, e não só a mais fantasiosa, na qual só ela define os critérios. Não, desta vez será a arte originária.

Mas parece afinal que sim. Domina-a. Fá-lo com simplicidade. Tenta cortar silêncios constrangedores, a cortante falta de palavras. E ri e grita. E baixa o tom porque ainda assim tem medo que ele a oiça. Com a falta de hábito vem o receio que as palavras lhe falhem, que soem estranho a alguém, mesmo que a ela não o pareça. Que aquelas a que dá um significado no seu diálogo sonhador, tenham já outro sentido para quem o diz em voz alta. Se existem sequer, se quererão dizer alguma coisa. Se não passarão de sons guturais para outra pessoa.

E ri e grita. E volta a baixar o tom.

Levanta-se e corre, com a sede da corrida. Porque se esqueceu de algo, e porque lhe faz falta. E simplesmente porque lhe apetece correr. Porque se sente liberta. Daquelas vontades que de vez em quando a todos nos dá. Entra na sala e esbarra com ele. Aqui, já sem a protecção dos óculos. Já nada é de esguelha. Claro, evidente e inevitável. E agora, para que sonho acorda?

Isa Marques, 11ºE, Escola Secundária de Camões

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