Reductio Ad Absurdum



Método do absurdo – “Este tipo de prova é feito assumindo-se como verdade o contrário do que queremos provar, chegando-se a uma contradição”. Wikipédia

Acordei hoje com uma vontade ávida de reduzir tudo ao método do absurdo. Desde o primeiro instante em que este abriu a sua grandíssima boca, comprimi as minhas sobrancelhas, fiz um ar de esguelha, espremi todo o meu raciocínio aos seus máximos, até ao ponto em que tudo se esvazia e esvoaça por estes ares aleatórios, profundos em raciocínios redundantes, o fogo-de-artifício para os nossos olhos. Animamo-nos com efeitos especiais e pirotecnia, é tudo o que o posso garantir neste preciso momento. Não nos retiremos isso também.

Esqueço-me automaticamente do que acabei de pensar. Puff, de tanto esforço mental se volta ao inicial. Mas sempre desconfiei dele. De tanto ar presunçoso, de tanto se perguntar o que as coisas realmente são, cambaleia, enrola-se todo nele próprio e, para mostrar que uma coisa é de determinada maneira, mostra que o contrário é um absurdo total. Ah! Como diria Tolstoi, nas suas últimas palavras na Guerra e Paz, é um absurdo mais freneticamente óbvio (e menos incomodativo para uma qualquer estrutura lógica previamente construída e agora, possivelmente, desmantelada) e, mesmo que toda a nossa intuição lhe lance pragas,parece que já nada disso interessa e nos passeamos por uma lógica tão profunda e cerrada que ninguém percebe o que raio é que ela quer dizer. Maldito disfarce para tudo aquilo em  que não nos vamos entender. Se não percebermos isto, admitindo a falibilidade de tudo o que somos, ainda parece mais estupidificante o facto de não alcançarmos o contrário da coisa sobre a qual alucinámos num determinado instante. Dizer o que não é parece sempre mais fácil. Sim, sim! Só corta até chegar à entidade desconhecida, ao ser, ao dito cujo...Adiante. Dizemos todos “Sim, sim…” e não nos deixamos ficar para trás. Apanhamos o comboio no escritório em casa, se houver material no mundo que nos elucide. O conjunto A está contido no conjunto A, e eu estou enrolada em mim própria. De tão confusa que sou, só garanto que aquilo que alucino, pelo menos, contido em mim está, tanto me canso de o pensar… Vêmos tudo aquilo que nos incomoda as entranhas e, de seguida, de tanta subjectividade, desconfiamos desta identidade que nos massacra o cérebro e procuramos demonstrar da maneira mais abstrata possível que não é nada assim, que o contrário, aquela outra identidade que não conheço de lado nenhum, esse sim, circunda-se das verdades mais absolutas, ou das mais incompletas, uma qualquer que nos alivie o cérebro por três segundos. (Isso ajuda bastante.)

Há também uma segunda hipótese: que eu não tenha percebido absolutamente nada (o absoluto e o nada juntos, vêm sempre a jeito…) do que me disseram e, depois de atacar quem tanto explorou este poço de incógnitas, percebo só que fui eu que me esvaziei, incomensuravelmente neguei aquilo que nem sei. Enfim, digamos que talvez também não tenha percebido Tolstoi, e arrastei-lhe as palavras na direcção que mais jeito me deu naquele preciso instante. Sabe-se lá se o li realmente, o melhor é rever… Mas será que não o recrio novamente? Maldita cabeça, faz de mim o que quer. O que dirá um outro indivíduo?

“Dos passos que na calçava dava, cada badalada se anunciava e, aquando do desejo de paragem, a inextricável paragem do tempo, o raciocínio se prolongava, ao ouvidos proclamava: Se este é o mesmo chão de todos os outros dias. Se estes são os mesmos pés. Se esta é a mesma dimensão... Estes passos, este levantar e baixar de pé, são inexoravelmente tão reais como os outros, como todas as leis da física que aplicaste aos pés que contigo caminhavam anteriormente. Cada instante um estalar de osso, uma palpitação, um movimento ligeiro do dedo grande do pé… Sim! Sim! Os instantes somam-se como o relógio quiser, se nos dispensar os seus segundos... Assim sendo, chegamos a um absurdo, o tempo não parou. O poeta não mais alucinou.

O poeta caminhando acerca-se dum café. Entra no pequeno cubículo. Contempla a imensidão de objectos que o ocupam, um todo que se concretiza em nada em concreto. Madeira esburacada. Madeira escura. Nas paredes e no teto parece querer saltar. Parece ter andado a banhos e ter inchado. Também ela quer sair daquele cubículo. Não tem fomes dessas, não tem carências alimentares, quer só a maldita liberdade. Será liberdade tanto inchar quando ninguém o desejar? “Senhor poeta”, aquele do José Afonso. Pode ser esse mesmo. Olha a empregada. Ela olha-o também. A sua boca parece inchar e desinchar. Lábios grossos, vermelhos de batom, vermelhos de infortúnio. Olhos azuis, olhos dilacerantes. Buracos nas faces. Um ponto cardeal. Ela olha-o. Ele voltou a parar o tempo. Não há hipótese agora, deixem-se de coisas.

O telefone toca. Ela estica a mão na sua direção. Ele estica a cabeça, esperneia, foge das grandes unhas, das garras felinas que acumulam a imundície do mundo há décadas, sem contenção de qualquer género. O nojo! O asco! Mas está preso, como se estivesse dentro duma moldura de vidro. Ela puxa-o, solta-o. É ele o lavagante de Dali, o telefone de Dali. Nunca pensou que funcionasse, quanto mais que fosse ele… Coisas estranhas, tantas vezes o contemplou e afinal só se via ao espelho. Seria o reflexo no vidro da moldura a que está hoje preso?

Espera, ela pousa-o. É Roquentin. Oh, Antoine! Vem ele ver se o dono do café está morto no andar de cima. Mas já sei que não, umas páginas à frente, talvez umas vinte, sabe-se que está só constipado. A filha cuida dele. Tem calma, Antoine! Triste vida a minha de lavagante entre lavagantes. Dizem que as lagostas são eternas, tem a ver com o comprimento dos seus telomeres. Não me façam isso, vida de telefone para surdos, vida de leitor de letras para surdos… Isso não!

Aí vem ele. Diz então à minha carapaça branca:

- Pssss. Quem te disse que não posso viver num livro?

Ora bem, do nosso conhecimento da tão anunciada realidade, do tão famoso mundo real, altamente citado, inúmeras vezes estudado, chegamos à conclusão que as pessoas não são telefones lavagantes e Dali não transformava pessoas em telefones omnipresentes. Mesmo em livros, não há experiências físicas que o evidenciem, não se sabe da gravidade nesse planeta...Quanto a Antoine de Sartre, não viveu. Só na cabeça dele. Nós que tanto nos damos a raciocínios de cabeça, que outros não conhecemos, temos em conta aqueles mais vezes multiplicados. O de Sartre foi anulado. Podemos chamar-lhe louco. Isso parece razoável, menos penoso e duradouro, um raciocínio simples. Assumo que tudo o que não percebo imediatamente está mal escrito, não existe, é uma alucinação… Não me esforço, é como uma teoria irrefutável. A alucinação é tão pouco constante, dali nada deduzo… Nenhum telescópio os viu num planeta distante a inchar com a madeira, os três a flutuar… Ganhou esta nossa equação. É um absurdo. A realidade não é um livro, nem um telefone mudo, logo o poeta alucina. Assim se conta esta matemática finita, assim se estabelece a famosa bijeção. Falta a regra geral, é tão inconstante… Hummm, não existe. Absurdo!”

O poeta de palavras soltas exaspera, contorce-se, cada vez percebe menos… Também tu, dentro dos teus absurdos tens o pai deles todos. “Estou vivo?” Sim, porque não estás morto. E, logicamente, estes se evidenciam como contrários. Palavras rígidas, inertes, barreiras… O ponto de interrogação. São estas as profundezas da lógica, do infinito ao infinitésimo. De quem só nelas viva que esmoreça!



Isa Marques, ex-aluna da Escola Secundária de Camões

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