Relicário de Cheiros - Parte 2
A mistura de mofo com naftalina em bolas, sempre foi bastante aprazível para o meu sentido predileto. Fechava e abria as gavetas ritmicamente, só para conseguir inalar com sofreguidão, aquele odor característico, do quarto lá ao fundo, da casa da avó Raquel. Depois da digestão do cheiro das estolas e dos naperons, a passagem pela cozinha era obrigatória, tal qual como na casa da avó aristocraticamente chamada Teresa, pois o cheiro a filhó acabadinha de fritar era imperdoável, combinando canela, ovos e óleo sobreaquecido, numa miscelânea de aromas tradicionalmente tradicionais. À saída, dava de caras com um bibelot de porcelana, visivelmente cuidada, e que eu, à partida, fingia não prestar atenção nenhuma, mas, quando as atenções estavam todas dissipadas, timidamente, pegava na menina burguesa voltava-a ao contrário, e de pernas para o ar, tentava decifrar aquele intrigante cheiro a nada. Fascinante, como é possível tamanha combinação de materiais cheirar a vazio repleto de nada? Sempre me habituei à ideia de que a minha avó tinha escondido o cheiro, só para eu não pegar no raio da menina. Bem-feita, uma vez deixei-a cair. Partiu-se. Um ovo escalfado esborrachado no chão, lápis de carvão acabados de afiar, relva molhada, livros antigos e novos, colchões de molas, madeira ensopada até ao tutano e sopa do cozido a fumegar são alguns dos meus cheiros prediletos, passeando-se na alameda dionisíaca dos meus pequenos prazeres. Talvez contar a minha história da eternidade através dos cheiretes agradáveis, não tenha sido assim tão má ideia, na verdade, o sentido preside ao nariz de todos.
Gonçalo Dias, 11.º F
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