Até Manhã - Capítulo III- Pleno sofrimento




Depois de ter aceitado o meu primeiro rebuçado, nunca mais consegui encontrar o fim, tornou-se num ciclo vicioso, num gesto mimado pela dúvida.
Passaram três dias, duas semanas, um mês… E eu passei das mãos de uma dúvida para as mãos de uma certeza. Era oficial, eu estava completamente dependente do meu novo mundo.
O meu contrato, que fez com que entrasse neste rodopio sufocante, foi uma burla, assinei um papel sem ler aquelas letrinhas pequeninas, que normalmente retratam as consequências. Errei, sim, hoje tenho consciência disso, e ainda bem que fui uma das pessoas que acreditou que um dia sairia do país das maravilhas.
Mas enquanto isso não aconteceu, eu continuava a sonhar, e a depender desse sonho para viver (dessa ilusão, para assim dizer).
Estava agora, com o presente da dúvida na minha mão, eu tinha-o aceitado inconscientemente. Olhava para ele, com um ar de quem não sabia como é que ele tinha ido ali parar. Ainda hoje, não faço ideia.
A dúvida fez-me um gesto com a cabeça, para eu pô-lo de uma vez por todas na boca. E eu, sem ter tido tempo para pensar e, sentindo um certo remorso pelo meu gesto impulsivo de ter ficado com o rebuçado nas mãos, obrigou-me a não poder voltar a trás na minha decisão, principalmente por falta de coragem.
Engoli-o por fim. Senti que, passado algum tempo, a minha boca estava completamente seca, custando-me a engolir… sentia os meus olhos pesados como tijolos, sentia as minhas pernas a tremelicarem de fraqueza. Pela primeira vez, tinha entrado naquele mundo onde tudo era passivo e despreocupante, era deveras o meu mundo, mas só até o efeito daquele rebuçado durar.
Comecei a sentir o meu corpo a encolher cada vez mais, até que me deparei do tamanho de um ser insignificante. Olhei para cima e não via o céu, mas sim a dúvida. Agora, o sapato da dúvida; um simples sapato vermelho, era algo majestoso, que impunha respeito, um objecto que era tão comum no meu dia-a-dia…
Tentei olhar para a expressão que aquele ser incógnito fazia, mas conseguir ver a sua face, era tanto o quanto mais difícil que subir o Monte Evaresto. Eis então, que ela se baixou para me cochichar ao ouvido, que agora, eu era livre, era um ser que tinha toda a liberdade para explorar tudo aquilo que os humanos não conseguem ver. Nesse momento, acho que me senti vigorosa, mesmo sendo daquele tamanho. Mas mais tarde, quando o efeito do rebuçado passou, eu sentia-me a pessoa mais rude, mais fraca, por me ter considerado poderosa, por me terem comparado às capacidades de um ser irracional. Sabia que era um ser frágil e fácil de atacar, não só pela minha pequena auto-estima, mas também por naquele tempo viver em permanentes mares de angústia.
Sentei-me no chão, sem saber o que fazer, tentando encontrar algo para confeccionar. De repente, os grãos de terra libertos do aglomerado de argila provocada pela chuva, começaram a tremer… Vinha na minha direcção, o esquilo que incrivelmente se tinha tornado o triplo do meu tamanho actual.
Desatando-me daquela dúvida, sem me lembrar que, se me afastasse dela, nunca mais voltaria ao meu mundo real, corri com todo o meu folgo atrás daquele animal hábil e veloz. Quando, tropeçando por entre folhas, caí. Dei por mim, a cair no infinito da minha amargura, do meu sofrimento, por não poder ter a hipótese de voltar atrás naquele passo remoto. Por fim, depois de tanto trauma e sofrimento, fiz uma aterragem no meu rio de lágrimas brando e subtil, capaz de afogar as mágoas de uma pessoa dócil. Na confusão de tanta adjectivação e comparação, abri os olhos num verdadeiro buraco arrepiante que me trazia a lembrança, que estava completamente abandonada naqueles sombrios túneis subterrâneos.
No fundo daquelas galerias, conseguia ver uma luz ofuscante, que chamava por mim no meu daquela escuridão…consegui reparar que se tratava de um ser humano, naquele caso, uma mulher. Uma mulher coberta da cabeça aos pés, com um turbante preto vivamente angustiante. Caminhava levemente tentando-me mostrar, que não tinha pressa em chegar, pois o destino era aliado do tempo.
Será agora, que eu vou voltar ao meu mundo real? Tirem-me daqui!


Mafalda Serra, Escola Secundária de Camões, 10ºE

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