A Sombra



Quando chegámos à areia reparei nos olhos da Sombra, abertos, escandalosamente abertos, como um radar, mil olhos dentro de um par. Ela baixou-se depois de termos dados dois ou três passos. Parei. Esperei enquanto a via mexer na areia com as mãos. Sorri, embaraçado, envergonhado, a sentir-me, também eu, vagamente criança. Era quase mágico ver alguém passar areia fina pelos dedos, alguém que nunca tinha tocado em areia fina. Aquela poeira dançava pelos dedos dela, muito brancos, e caía e voltava a ser resgatada pelas mãos dela. A Sombra levantou-se. Sorriu. Percebeu que eu estava à espera. Desculpe. Sorri e ri-me levemente. Não, não há problema nenhum. Andámos mais um bocadinho. Ela virou-se para mim, como se guardasse uma dúvida. Acha que me posso descalçar? Ah sim, claro que podes. Ela debruçou-se ligeiramente, tirou os sapatos, tirou as meias e ficou descalça. Os pés dela revolveram a areia durante um bocadinho, como se tudo aquilo também fosse música, como se aquilo ainda fosse a bailarina dentro da caixa de música.

Não estava ninguém na praia, só uns quantos surfistas no mar e um homem e um cão a alguns metros. Caminhámos pela areia fora, o cão e o dono vinham na nossa direção. Era um cão bastante grande, de pêlo claro, com umas orelhas compridas, patas muito longas. Começou a aproximar-se cada vez mais de nós até que se pôs a rondar as pernas da Sombra. Tive medo que o cão pudesse ser agressivo, mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa já ela tinha pousado os sapatos e estava de joelhos na areia, a fazer-lhe festas nas orelhas. O cão tinha os olhos muito abertos, muito dóceis, a língua de fora, a respiração ofegante. Parecia estar muito satisfeito com a atenção.

Afastámo-nos. Queres que eu leve os teus sapatos, Sombra? Não, não é preciso, Senhor R., obrigada. Ficámos em silêncio, só se ouviu o mar, mas foi durante muito pouco tempo. Não se quer descalçar também, Senhor R.? Fiquei incrédulo com aquela pergunta, era bastante claro que ela também não sabia se devia fazê-la. Era como se houvesse sempre ali uma criança entre nós, a dar corda à caixa de música, a inventar perguntas como aquela, a perguntar a um adulto se não quer também descalçar os sapatos e deixar que a areia dance livremente pelos pés sempre fechados nas suas cápsulas de sociedade moderna. Ri-me levemente, nem soube o que responder. Ela sorriu também, como se o meu sorriso lhe tivesse confirmado que não devia arrepender-se de ter feito a pergunta. Descalcei-me também e depois de o ter feito achei que fiz bem, era agradável sentir a areia nos pés, era leve, era macio. Era como se de repente tivesse passado de uma relação à distância para uma relação de amizade com o próprio solo, com a própria terra.



Leonor Gaião, 11.º I

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