Superfície
Das peças pintadas a lápis, desde os laranjas carregados aos azuis eléctricos, a transparência é menor que a calculada. Ela tem a pequena composição feita de peças. Um nariz, um olho, um maxilar proeminente…Tantas coisas, tão poucas que se liguem.
Poder-se-á chamar-lhe um quadro, pedaços de cartão salteados. Vê um olhar de que gosta, e trata de o passar para um pedaço de cartão, maior ou menor, consoante a grandiosidade da observação. Carrega nos lápis com força, carrega nas cores…Pode ser que de lá saia o que realmente viu. Ouve uma voz, gosta do seu eco, gosta da sua gravidade. Do maxilar, da boca e da maçã-de-adão. Da maneira como todos se movem no instante de apreciação, e lhe dizem em unicíssimo “Eu mereço ser recordado, eu não tenho igual”, “Eu desenhar-te-ei”. É só uma questão de pegar nos cor de pele e dar-lhes significado. “Só”, e no entanto é já tanto. Fá-lo para que quando acabe comece qualquer outra coisa, que lhe pareça menos ingénua naquele momento, e se lhe iguale daí a meses. É um passar de tempo, um discorrer de ideias, para que se não fiquem só por pensamentos. E passa-se para o pedaço de cartão o que ares de ridículo tem na cabeça, e as aspirações não se concretizam.
Alguém acha que ela quer desenhar a “pessoa certa”? Oh, essa está sempre em metamorfose, quando se lhe desenha os contornos da boca já a geometria do maxilar se desinstalou. Outra virá! É maior a angústia de pensar que alguém o veja dessa maneira do que a de ela vir a fazê-lo. Não, as peças vão sendo trocadas gradualmente, afinal não é nada mais do que platónico, uma sensação semanal, a que se segue outra. Não será assim com tudo? O que fazia sentido há dias atrás depressa se desmancha. Mas sem rancor ou sofrimentos, simplesmente assim o é, ela só tenta acompanhar o seu ritmo desenfreado, e não há vez que observe aquela composição de longe e lhe pareça fazer mais sentido. Já lhe ocorreu algo à cabeça entretanto. E o quadro nunca passa do mesmo perímetro, por mais anos de trabalho que carregue consigo. Está em constante renovação, o eterno frenesim do novo conhecimento. Assim é, e sempre assim será. Angustiante? Nem por isso. Quando se considerasse satisfeita, pararia, para nada contribuiria.
Conversa e gosta do que ouve, como uma familiaridade vinda do nada, simplesmente lhe agrada a presença, a compreensão não verbal. A verbal também, mas quando se juntam as duas, aí sim, há uma conexão, ela sabe que é recíproco. Nada de sentimentos românticos, só um ambiente que se compõe por si só, sem esforços. Como passá-lo para o papel? Estará tudo na cabeça, nos gestos, nas palavras? Não. É aquela distância entre olhos, as sobrancelhas fortes, a forma como a estrutura óssea se compõe. Se uma coisa vem depois da outra, a compreensão da sensação que só depois se concretiza em pontos visuais? Talvez, já nem sabe dizer ao certo. E desenha, e não usa cores convencionais, aquelas que se vêem a olho nu, e sim aquelas em que se mistura sensações mentais com as visuais, uma misturada individual, só dela. Os pretos desfrutam o seu frequente uso e vêm carregar as sensações. Os amarelos-torrados vêm forrar os fundos e quase que formar uma película à volta dos rostos, como quem diz, “Isto está no cartão, mas ainda está longe da tua compreensão… Afasta-te!”.
Desde que alguém sinta alguma coisa vinda dali…Pouco lhe interessa se é a sensação “correcta”, o que ela sentiu. O mais provável é que não o seja. Só quer sentir e que se faça sentir. O ser andrógeno está em eterna renovação, mas só alguns verão o mundo ali. Só quer expressões, movimentos e sensações. A natural expressividade física, nada de exageros, nada de interpretações conceptuais.
Isa Marques, Escola Secundária de Camões, 12ºC
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