Como um Lago de Verão
“A estrela cadente me caiu ainda quente na palma da mão”
-Paulo Leminski
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Parte I
Desejos são uma coisa extraordinária, não são? Em pequena escala, são apenas ligeiros
picos de emoção nos nossos dias: “Aquela camisola é gira”; ”Quem me dera que parasse de
chover”; “Mas será que o autocarro não se pode despachar?”. Mas é claro que estes desejos
são inúteis. Por muito que gostemos da camisola, não vai aparecer dinheiro por milagre no
nosso bolso. Enquanto as nuvens tiverem água para dar, vai continuar a chover. O autocarro vai
sempre demorar o tempo que for preciso.
Felizmente, a nossa incapacidade de concretizar estes pequenos desejos está de acordo com
o nível de felicidade que a sua concretização nos dá. Compramos a camisola e ela vai para o
armário; para de chover e fechamo-nos no quarto; o autocarro chega e nós entramos. Enfim,
os pequenos desejos servem para pouco mais do que para garantir que as nossas emoções não
cantem numa só nota ao longo do dia.
Mas grandes desejos? Desejos que pedimos a todas as estrelas cadentes, desejos em que
pensamos sempre que lançamos uma moeda para aquele lago, desejos por que imploramos
a ninguém em especial à noite, nas nossas camas, enquanto a ânsia por eles deixa as nossas
almofadas molhadas de água salgada, desejos feitos não só pelos nossos olhos esfomeados ou
cérebros calculistas mas sim pelos nossos corações incompletos e pelas nossas almas feridas, em
plena harmonia, esses desejos?
Esses desejos são uma história completamente diferente.
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Era uma vez, numa terra muito, muito distante, um grande e próspero reino chamado
Helianthus.
Neste reino, de terras férteis e clima quente, não havia quem não fosse feliz, desde o mais
humilde camponês, até à adorada família real. A doce Rainha Dorothea, sempre passeando
pelas estreitas ruelas do reino, conhecendo o seu povo e recebendo o seu afeto em troca. O
atencioso Rei Rupert, disposto a ajudar os pequenos reinos vizinhos, sem nunca descurar a
governação do seu mesmo. O divertido Infante Edgar, sempre responsável pelos torneios e
festas reais.
Em Helianthus, não havia quem não fosse feliz.
Isto é, sem contar com o pequeno Príncipe Nicholas, claro.
O Príncipe Nicholas era o primeiro, e até então único, filho do Rei Rupert e da Rainha
Dorothea, e, como tal, para além de ter a coroa como herança garantida, o pequeno Nick tinha
também herdado a adoração do povo pelos seus pais, desde o dia em que a gravidez da rainha
havia sido anunciada.
Assim, foi com grande desalento que a população e a corte viram o adorado Príncipe Nick
passar de recém-nascido amoroso a bebé sorridente, e de bebé sorridente a criança cujo brilho
nos olhos tinha sido apagado.
Ninguém entendia a que se devia tal tristeza. O amor dos pais pelo menino era claro até para
o mais cego dos habitantes, e o príncipe retribuía-o com constantes abraços apertados e beijos
molhados nas bochechas dos seus pais. Nunca nenhum mal havia chegado ao reino durante a
ainda curta vida do príncipe, nenhuma morte havia roubado um suporte à criança. As senhoras
no mercado sorriam embevecidas quando o príncipe, com uma educação que nem o mais
insolente pajem podia quebrar, lhes trazia flores e elogiava os seus vestidos. O padeiro dava-lhe
pães com mel pelas costas da mãe e os adolescentes discutiam sobre quem ensinaria o pequeno
Nick a deslizar pela lagoa.
Nenhum defeito podia ser apontado ao comportamento do príncipe. Mas a verdade é que, ao
passear sozinho com a mãe pelas amplas praças do reino, os seus sorrisos nunca enrugavam a
sua testa e os seus olhos azuis nunca apareciam sem aquela aflitiva sombra cinzenta.
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O príncipe Nick subia as escadas que o levariam para o seu quarto enquanto esfregava os
olhos sonolentamente. Nesse dia, haviam decorrido as celebrações do seu 10º aniversário, e o
extensivo e carinhoso programa dos seus pais tinha acabado com todas as suas energias.
Depois do passeio de barco pelo lago, da ida à sua pastelaria predileta, da passagem pela loja
de brinquedos do Sr. George, do baile e da abertura dos numerosos presentes, um enorme bolo
tinha sido transportado até ao centro do salão principal do palácio.
Dez velas ardiam calmamente à sua frente quando a sua mãe se ajoelhou a seu lado e
sussurrou ao seu ouvido:
“Pede um desejo meu pequeno.”
Que mais pode um pequeno príncipe desejar?
Nicholas fechou os olhos e soprou com todas as suas forças, repetindo em pensamento o
mesmo desejo que todas as noites implorava:
Eu quero que alguém compreenda.
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Nick sabia melhor do que ninguém como é desejar tanto algo que esse desejo não deixa
espaço livre dentro de nós para mais nada.
Ele desejava-o durante as suas aulas individuais de esgrima, suspirando conformadamente e
desculpando-se ao seu instrutor quando este o encontrava desatento.
Ele desejava-o enquanto atirava a bola do Sr. William para este a apanhar. Ele desejava-o
ainda mais ardentemente quando o pobre cão lhe virava as costas e colapsava de cansaço por
tanto brincar.
Ele desejava-o enquanto o seu pai, absolutamente babado, falava, durante os grandes festejos
do reino, dos progressos extraordinários do seu filho em alquimia e do seu jeito inato para
argumentar (ainda que apenas para conseguir um lanche adiantado da empregada), aos reis e
rainhas dos reinos vizinhos, todos eles desejosos por filhos herdeiros para si próprios.
Ele desejava-o, durante esses mesmos festejos, quando tinha de fingir entender as conversas
entre todos os adultos presentes, pois não podia ausentar-se nem interrompê-los com um tema
do interesse duma criança de 10 anos.
Ele desejava-o. Ele desejava-o muito.
Ele só ainda não o tinha desejado no momento certo.
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Joana Coelho, 12.ºD
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