Jogar Limpo




- O calor é um hipócrita. – disse-lhe ela.

Estavam sentados naquele café há já algum tempo, aquecendo-se ao beber chocolate quente, quando ele disse que tinha saudades do Verão, iniciando a conversa.

- Um hipócrita? – respondeu ele, rindo – Tu és doida. É só um estado de tempo, não uma pessoa qualquer, duvido que consiga ser hipócrita.

- Achas mesmo? Pois olha que eu acho que ele é mesmo um grande hipócrita.

Ela olhou para fora da janela, como se quisesse dar a conversa por terminada. Ele continuou a olhar para ela, esperando que continuasse, interessado nos argumentos dela para dizer uma coisa tão estranha. Esperou um pouco mais, mas, eventualmente, ouviu-a continuar.

- Toda a gente gosta do calor e toda a gente detesta o frio. Ensinam-nos isto desde pequenos. No Verão podemos passear, mas no Inverno temos de ficar em casa. Eu não percebo… - ela parecia realmente incomodada - … O frio é que é verdadeiro.

- Vais ter de te explicar melhor, querida.

Normalmente, ela teria olhado para ele com um ar reprovador por causa do apelido carinhoso. Mas não hoje, hoje ela estava a defender a sua opinião.

- O frio não nos engana. Ele assume-se. Mesmo em pequenas doses, parece alertar-nos: “Vistam os casacos. Abriguem-se. Protejam-se de mim”. Sentimo-lo a entrar em nós, arrepiando-nos até aos ossos.

Ela fez uma pequena pausa. Está a tentar manter o suspense, ele pensou.

- O calor? Não. O calor faz-nos despir. Deixa-nos vulneráveis e desatentos. Parece dourar a nossa pele, aquecendo-nos por dentro. Mas o que fazer quando o calor é demasiado? Quando até dentro de água gelada está calor? Quando não há ventoinhas potentes o suficiente para nos refrescar? – a expressão dela transmitia tanta repulsa que parecia que estavam a discutir tortura medieval – Com o frio não. Mais um casaco, mais um cobertor, mais um cachecol, mais um aquecimento. Há sempre uma maneira de manter o frio afastado. Mas não o calor.

- Então, a tua ideia é que o calor é hipócrita porque nos convence que é espectacular, até nos fazer derreter? – ele disse em tom brincalhão.

- Sim – ela respondeu, parecendo não ver qualquer piada na situação – Tanto o calor como o frio nos podem matar. Ambos são igualmente perigosos, mas apenas o frio joga limpo.

Ela parou de falar, levando a caneca de chocolate quente aos lábios, enquanto olhava novamente pela janela, notando um pequeno floco de neve que caía. Ele também o viu. E entendeu.

- Sabes o que te digo? Ainda bem que é Inverno. – ele disse.

E os dois sorriram.

Joana Coelho,10ºD

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