Memória



Eu costumava ficar a ver uns rapazinhos, umas crianças, nove ou dez, que jogavam à bola num pátio à frente da minha casa. Era um pátio de relvado preto, preto como a noite. Nunca percebi se era sintético, se era de plástico ou de cartão. Era sim um relvado sem fim, onde eu via correr pés até ao início da noite. E eu gostava muito de os ver jogar, de os ver correr, de os ouvir rir até que o som dos grilos de confundisse com o riso. Eram crianças, apenas crianças, e eu maravilhava-me com a rapidez do rolar da bola, com a destreza daqueles pés que ficavam da cor do carvão de tanto magicar por todo o lado. Eu ficava a vê-los muito tempo, até que a vista me doesse, até ser preciso desencantar os binóculos do fundo do cesto de madeira sempre arrumado num cantinho do meu quarto. E houve um dia em que me apanhei a desfazer um pensamento tolo e presumi que talvez os tivesse observado durante demasiado tempo. Pensei que uma bola de futebol era uma coisa muito interessante, que era como o mundo, como a vida. Primeiro é brilhante, lustrosa, perfeitamente esférica e bem feita. Gira, gira sem parar, gira sobre si própria e rola sobre um relvado inteiro, experimenta a força de mil pés, o embate pouco agradável de tantos pontapés mal medidos. Gira, gira, e vai ficando mais gasta, mais podre; suja, suja de terra e dos pedaços de mundo que vão atrás. Rola e rebola e fica um farrapo, uma esfera suja de onde saem farrapos desintegrados de tecido. E, nem sei bem porquê, mas para mim foi curioso pensar que aquela bola nos pés das crianças já não era um bola, mas um trapo. Dormi em pé na cama daquele pensamento e senti, subitamente, um espasmo. O espasmo de quem acorda de repente. Quantos trapos não deixei já cair enquanto os olhava da janela? Baixei a cabeça e reflecti. Um trapo. Um trapo não magoa, mas se um trapo não é um trapo, mas uma bola de futebol… Levantei a cabeça lentamente. Nesse caso, já devo ter magoado muita gente.


Leonor Gaião, 11.º I

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