Até Manhã- Capítulo I - Digressões




Podia escrever um livro com a minha vida, mas duvido que alguém se fosse interessar… Podia compor uma canção com todos estes acontecimentos impulsivos e tiranos que retratam uma pessoa fútil como eu; mas para se vender teria que se tratar de uma pessoa loucamente escaldante e latina, coisa que aparenta ser apenas o meu reflexo no espelho…
Num dia, acordei mais cedo que o habitual, por causa de uma luz que transcendia pelos buraquinhos dos meus estores semi-serrados…
Algo me fez saltar da cama, uma força que eu não conseguia controlar.
Vesti-me, sai de casa sem ninguém dar por mim, naquele amanhecer que requeria um dia soalheiro, que mais tarde eu iria perceber que era apenas uma ilusão óptica.
Decidi, então, ir dar uma passeio sem destino nem direcção, apenas onde os meus pés me levassem, pois a minha cabeça estava demasiada ocupada para reconstruir uma rota. Comecei a descer o meu monte, que já fazia parte do meu ritual se quisesse sair de casa. Aquele monte era uma miragem no meio da cidade mais movimentada de Portugal, o único sítio onde se pode encontrar a nossa paz de espírito, pois o simples facto de respirar o odor do orvalho ainda molhado pela humidade de uma noite chorona e clara e pelo prazer de ver o sol translúcido a encandear todas as plantas e florezinhas que naquele amontoado de terra batida se encontravam as ser sugadas até ao último resíduo do seu néctar por abelhas e abelhões, fazia-me pensar que se os arco-íris têm um tesouro no sítio onde eles tocam no chão, então o tesouro estaria no meu monte.
Continuei a descer e ao mesmo tempo abanava a cabeça para deixar de pensar em fábulas.
A meio do meu caminho encontrei uma dúvida… Aparentava ser uma dúvida muito difícil de questionar pela segurança que transmitia ter, pelo seu jogo de cintura quando andava.
Meteu conversa comigo, mas eu estava numa de não falar com estranhos, mas ela insistiu e perguntou-me se eu queria um rebuçado… Eu olhei-a com um ar agressivo contendo-me apenas que os meus olhos dissessem tudo, mas ela continuava com um sorriso irritante que me fez balbuciar por entre dentes “Não costumo aceitar presentes de seres icónicos”e segui o meu caminho, sem nunca olhar para trás, o que me custou bastante, pois eu não tinha percebido que raio de dúvida era aquela.
Mas algo me fazia pensar que, naquele dia, que já tinha começado longe, mas que o sol ainda nem tinha nascido, aquela dúvida era apenas a única certeza de todas as outras dúvidas.
No meio de tanto pensamento e confusão tropecei numa certeza e caí estatelada no chão. Por sorte, o meu nariz tinha caído no meio de um buraco que eu pensei que fosse uma toca de um animal qualquer pequeno, já que as suas dimensões não eram para um animal com um porte como eu. Levantei-me rapidamente, caso alguém estivesse a passar por ali e fizesse de mim alvo de chacota, mas lembrei-me que era demasiado cedo ou talvez demasiado tarde para alguém andar na rua… Mas, mesmo assim decidi verificar se alguém andava por ali, (força do hábito por tantas vezes ter tropeçado ou escorregado e ouvir um risinho estridente). E reparei que tal dúvida continuava no mesmo sítio onde tinha parado para falar comigo e o mais estranho é que me estava a olhar fixamente, mas o seu sorriso tinha desaparecido. Não sei porquê, mas aquilo fez-me sentir que o facto ter desaparecido aquele sorriso era um índice de que aquela dúvida convencida e arrogante se preocupava comigo.
Olhávamos uma para a outra fixamente, sem nunca pestanejar sempre com a esperança que a outra ia avançar. Errado, nem eu nem ela demos parte fraca, mas mesmo assim eu não conseguia deixar de olhar para ela, era como se me estivesse a hipnotizar e eu continuava, continuava, continuava…
De repente, vi um esquilo entrar para o buraco que estava diante dos meus pés. Desviei o olhar da dúvida e reparei que aquele ser insignificante levava um rebuçado nas patas, eu tentei apanhá-lo, mas foi um acto em vão, pois ele tinha entrado na toca rápido demais.
Fiquei espantada por um esquilo andar com um rebuçado nas manápulas e até pensei que tinha sido fruto da minha imaginação, mas lembrei-me da dúvida misteriosa e do que ela me queria oferecer. Dirigi novamente, o meu olhar para ela e consegui ver um brilho ofuscante que vinha do seu sorriso atrevido, parecia que me queria dizer que eu tinha percebido tudo, mas eu cada vez estava mais baralhada.
Oh, apenas pensei que ela tinha deixado cair sem querer o seu presente ao chão e que um pobre esquilo esfomeado o tinha apanhado e levado para a sua toca, mas seriam assim tão fáceis de decifrar estes mistérios? Eu não me podia esquecer da sua natureza, ela era uma dúvida!
E ela continuava perplexa a olhar para mim com aquele sorriso cínico.
E o sol, onde estava o sol que nunca mais aparecia!?

Mafalda Serra, Escola Secundária de Camões, 10ºE

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