Os Desolados



«Estava um dia frio e soturno, assaltado por periclitantes formas de precipitação, por temíveis ventanias e por nefastos relâmpagos que mais pareciam uma maldição dos deuses. No estaleiro trabalhava-se arduamente e um dos navios estava pronto a voltar a galgar mar. De facto, era um velho navio restaurado que tinha tido um infeliz e penoso passado. Houve muitas e tremendas cartas de reclamação quanto ao seu restauro, nomeadamente por familiares das vítimas do terrível acidente. Porém, a decisão foi impassível, incoerente (opinião partilhada pela maioria), porém sucinta. Talvez, por esse mesmo motivo, lhe tivessem apelidado de…» O marujo fumou uma cachimbada, saboreou-a por uns momentos e continuou aproveitando a redobrada atenção dos espectadores: «‘Almas Perdidas’…».
Observou a expressão de espanto dos ouvintes e, satisfeito, prosseguiu com a sua voz rouca e calma, perfeitamente congruente com o seu aspecto e fisionomia de marinheiro queimado pelo Sol, severo e de alguma idade: «Ninguém de perfeita consciência queria embarcar no navio, nem mesmo marinheiros experientes, pois todos o apelidavam de ‘Maldito’… No entanto, houve um grupo de intrépidos que se alistaram para partir na embarcação; eram chamados de ‘desolados’, porque todos eles tinham perdido alguém: uns a mulher, outros filhos e outros até… A alma!» Neste momento, um dos presentes bocejou alto, mas o contador não ligou por estar preso à história. Em adição ratificou, assentindo com a cabeça e murmurando “ A alma...”. «Chegou então o dia de partida. Céu limpo, mar calmo… Que grande dia para embarcar naquele navio de cariz tão ominoso! Apesar disso os presentes avisavam ser loucura e procuravam afastar-se dos tripulantes. Estava já em movimento o navio quando houve um de avançada idade que presenciava a partida e, que, por sinal, todos chamavam de ‘Sábio dos Sete Mares’: ‘O vosso destino é execrável! Não há esperança para quem caminha o trilho dos mortos!’ Os marinheiros ignoraram-no, mas não sem um peso acrescido no coração. O caminho era longo, a probabilidade de voltar era infinitesimal, mas continuaram olhando somente para a frente…». Houve uma tossidela seca no canto da sala. Ao que parecia o contador não conseguira impressionar ninguém. Achou ele que aquela juventude tinha falta de imaginação e de paciência, mais uma geração perdida, já lhe tinha perdido a conta… Não obstante, o rapaz que tossira deu-se conta do acto maldoso, e por isso levantou-se enrubescido, aclarou a voz e disse num tom obsequioso e contrito: «Continue, por favor, lamento a interrupção.» O professor anuiu contente e surpreendido, pensando para com os seus botões que, apesar de tudo, ainda uma havia réstia de esperança. Abriu, portanto, a boca para falar, mas a sua voz foi sobreposta pelo toque que anunciava o final das aulas. Quando este parou, o docente voltou a abrir a boca desta vez dizendo que iria continuar para a próxima aula a maravilhosa história d’Os Desolados, apesar que não estar contemplado no programa da disciplina, o qual já tinha sido todo dado - pois as aulas já estavam no fim. Dito isto deu-lhes licença para sair. Observou assim os cadetes a sair da sala de aulas. Era o professor de História Náutica, e amava a sua profissão na Escola Naval. Por esta já tinha passado muitos e austeros Invernos, tinha tido contacto com centenas de alunos e, no entanto, uma coisa não mudava: O gosto por uma boa história de aventura era sempre partilhado e com isso sempre lhes mudava a forma como viam a sua vocação, sempre lhes fazia caminhar, em largos passos, para o mar e, se possível, para o desconhecido.

Tiago Esteves,Escola Secundária de Camões, 12ºD

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