Relicário de Cheiros - Primeira Parte
Se há coisa que mexe comigo são os cheiros. Existem pessoas que negligenciam a sua presença, apurando o sentido crítico de outros sentidos, agora, eu, com o faro, navego tempo e espaço. Ó realidade malfadada! Será o bedum oferenda ou espinho? Ó providência divina! Será o incenso perfume ou heresia? Na prática a coisa adquire outras dimensões, chegando a ser desproporcionais ao sentido, mas não ao sentimento. Assim, um inventário, disfarçado de relicário do pivete ou da colónia, sugerindo a grandiosidade dos cheiros, pareceu-me algo sensato. É de tarde, com o lusco-fusco já plenamente instalado, chego e entro em casa da minha avó paterna, figura alta e elegante, de olhar verde e penetrante, inundando o hall de entrada de uma fotogenia humanística, sempre com o seu olhar altivo e imponente, contudo meigo, mulher revolucionária e castiçamente elitista. Mas, antes do despertar da mente, já o nariz revela a pulsação olfativa, no meio da névoa mística daquele palacete e do cheiro a madeira envernizada, distingue-se claramente um cheiro intenso e reconfortante, penetrante e isolador, na verdade, o Português Suave Azul que ela ventilava aos dois maços por dia, traduzia-se num cheiro único e quente, quase exótico, que mais nenhum tabaco tinha. Naquela casa cada dependência emanava paradisíacos perfumes, na cozinha a erva-doce e o bacalhau davam o seu ar de graça, na biblioteca eram as colónias dos livros velhos e os cinzeiros transbordantes, no salão entranhava-se-me no nariz o cabedal usado e as peles dos animais selvagens estendidos nas paredes, e, por último, na divisão do descanso, o paralisante olfato da soma do icónico tabaco com escovas de crina quase perpétuas e, lá, no íntimo do quarto, um cheirinho a um passado bem vivido, nostálgico e perene.
Gonçalo Dias, 11.º F
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Simão